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Luísa Castel-Branco

Recordar a Páscoa

Luísa Castel-Branco, 24.03.09
 

Sempre que a Primavera chegava, sentia como se os campos da sua meninice surgissem por todo o lado, tomando de assalto a cidade, calcetando as ruas e cobrindo as paredes dos prédios altos.

E Lisboa virava a sua aldeia. Os mesmos perfumes, um vento doce matizado do açúcar das flores, da terra húmida e prenhe.

Na Primavera era mais fácil trabalhar na cidade e fazer o longo percurso de volta a casa, num subúrbio onde os prédios se tocavam uns nos outros, os estendais da roupa tão chegados que as camisas se abraçavam umas nas outras como se de gente se tratasse.

Gente havia muita na correria de prédios, mas era gente que não falava, nunca dava um cumprimento e parecia partir de manhã a correr, tal como ela, e chegar à noite com pressa de trancar a porta da rua.

A ela fazia-lhe falta a soleira da porta da sua terra, naquelas noites de início da quentura, quando o mulherio se sentava à porta a dar dois dedos de conversa. Os homens iam à tasca e vinham cantarolando, os gaiatos corriam para baixo e para cima a jogar à bola, às escondidas, à "mamã dá licença".

Sentia-se a chegada da Páscoa, das bolas como ovos cozidos, da bênção do senhor padre a cada casa. E eles todos vestidos com o que de melhor tinham, roupa de Domingo Santo, roupa de "ver a Deus".

Enquanto a camioneta percorria com lentidão o trajecto de todos os dias, hoje para ela eram outros tempos e por uma vez sentiu-se novamente menina e moça com o futuro inteiro na palma da mão.

 

in Destak 24 | 03 | 2009 

Adeus, homem bom

Luísa Castel-Branco, 17.03.09
 
 
 

Igual a tantos seguramente. Gente desconhecida mas que marca a vida daqueles com quem lidaram, de quem os amou, ou simplesmente de alguém com quem por voltas do destino se cruzaram numa qualquer esquina da vida. Era um homem bonito. Os seus 75 anos tinham-lhe desenhando no rosto um mapa de rugas. Mas suaves, como suave era a sua pele e os seus olhos azuis, qual bebé da sua mãe que um dia fora!

Era é um ser tão agradável, tão amável, companhia mais prazenteira não havia, naquele misto de alegria envergonhada, sabedoria enciclopédica, mas sempre transmitida como se de coisa simples se tratasse.

Era um homem para quem a vida tinha sido de luta. De muitas quedas, muitas. Recomeçara várias vezes, como um gaiato que se levanta do chão, sacode os joelhos e pega de novo na bola. Era assim que ele tocava a vida para a frente.

Mas não havia assomo de tristeza no azul dos seus olhos, nos lábios finos e nas mãos elegantes e eloquentes. Tinha uma alma limpa. Tinha passos pequenos e leves, porque tudo nele era leve, não fosse incomodar alguém.

Ah! A voz doce deslizava como manteiga em pão quente. Gostava de ópera. Dos clássicos. Do cheiro da terra e do convite ao silêncio. Creio que acima de tudo amava a paz com tanta força como amava as duas filhas, e os irmãos.

Vida de luta. Vida de excessos. De amor, de lágrimas. Sei que o meu mundo diminui hoje drasticamente. Com a morte do meu Tio Luis Filipe, grande parte da minha história de sangue desapareceu. Sem ele, estou mais pobre

 

 

in Destak 17 | 03 | 2009 

Não foi hoje, foi ontem

Luísa Castel-Branco, 15.03.09

 

 
 
 
Não há espaço para mim.
Não tenho medida nem proveito.
Estou a mais onde quer que esteja, como algo incómodo, não doloroso mas incomodo.
Nem se pode dizer que estou perdida porque para tal teria que ter sido diferente em algum tempo, em qualquer momento do caminho.
E nunca foi.
Deve haver uma equação matemática para tal realidade.
Como se o centro implodisse, engolisse tudo o que estava ao seu redor e afinal, tudo não passou de uma ilusão óptica, criada não por milénios e milénios nem a velocidade superior à luz. Não. Apenas aqui nesta vidinha, neste percurso tão pequeno que é a existência de um ser humano.
Mesmo quando eu acreditava (ou os outros) ser o centro das atenções, dos confrontos, das opiniões contraditórias, afinal e sem o saber, representava apenas o papel que me tinha sido distribuído pelo encenador antes mesmo de eu chegar a esta encarnação.
Com o passar dos anos, o meu papel esfumou-se ou então fui eu que como na história do Pinóquio, ganhei uma consciência que não era suposto ter.
Talvez. Não sei.
Sei que hoje mais três tulipas se abriram e mostraram as suas cores maravilhosas. Duas são misto de rosa e lilás e outra é negra e misteriosa.
Sei que a arvore lá em baixo da qual eu não conheço o nome, se encheu de flores minúsculas de um carmim misturado com branco. E do outro lado, a trepadeira deu hoje mais alguns cachos de cor lilás, como se fossem vinhas de flores.
Disto eu sei.
Mas nada mais. E desconheço-lhes a história, como se chamam e como trata-las, por isso limito-me a passear junto delas, quedar-me por instantes e falar-lhes de mansinho, como uma mãe apaixonada pela sua cria.
Há um perfume a doce no ar, tão doce como uma cozinha com a mesa do meio coberta de bolos quentes que saem do forno e o odor da massa quente envolve tudo e todos, a saliva a crescer nas bocas e os olhos a rirem-se de expectativas.
Estou a mais onde quer que esteja.
Estou a mais dentro do meu corpo, ou então o meu corpo não sabe o que fazer comigo e por isso mesmo se revolta constante, diariamente. E dia após dia, ano após ano, sem momentos de descanso ou tréguas, ele padece de algum mal diferente, uma sintomatologia diferente e ali vamos nós, os dois de braço dado, eu e o meu corpo para um novo hospital, um novo médico, novos exames.
Estou a mais na vida daqueles que amo. Mesmo com o esforço enorme que faço para não ser um peso, não, tento ser uma nuvem na chávena de café do pequeno-almoço, uma boa lembrança quando eles abrem as portadas para um novo dia, sei lá, qualquer coisa permanente e ao mesmo tempo tão leve como uma teia de aranha.
Mas sinto que falho os meus objectivos e uma vez mais, deveria eu ser transparente para todo o sempre, que é como quem diz, acordar amanhã e olhar à volta e ver tudo, sentir tudo de forma diferente, audaz, feroz, sem consentimento de ninguém e muito menos necessidade de seja quem for.
Quem me amou de verdade nunca conseguiu dizê-lo por palavras, por gestos, de alguma forma que pudesse ficar na memória da minha pele ou do meu coração.
Não, não falo de homens e paixão e sexo e paixão porque tudo isso tem a importância da minha tulipa antes de as folhas caírem uma a uma, num prazo tão pequeno que não é possível guardar tanta beleza.
Não.
Falo de amor com letra grande. Daquele que partilha o mesmo sangue nas veias e a mesma historia de vida por mais dispares que tenham sido cada uma das vidas de tanta gente que houve antes.
Só sei que estou a mais e hoje, não ontem, que perdi alguém que amava, que respeitava e admirava, sentado no sofá da sala, (como estariam os seus olhos azuis bebé?) a morte levou-o com todo o respeito, e por isso lhe agradeço, eu para aqui estou sozinha a falar para a pagina branca do computador,
Como há muitos anos atrás.
Ah! Nada disto interessa!
Acredito que ele me está a ver neste momento, de forma tão nítida como se estivesse aqui.
A seu lado, meu pai e seu irmão olha para mim com estranheza. Ele nunca gostou de pessoas fracas e é isso que me sinto, desculpem lá os dois!
A solidão pesa como um casaco molhado.
E o casaco não sem nunca de cima dos ombros, mesmo com o calor que hoje anda por aqui a lamber as plantas e as arvores.
Desculpem-me mas estou cansada.
Doente e cansada.
Triste e cansada.
Só e cansada.
Deveríamos ter unido todas as nossas solidões e talvez, quiçá, voltássemos a ser uma família feliz como em tempos fomos, naqueles tempos em que éramos tão virgens de tudo que tudo nos parecia alguma coisa.
Vou ter saudades daqueles olhos azuis, daquela educação exímia, à antiga, daquela cultura sem fim porque ele sabia o nome de todas as coisas, as historias por detrás de todas as histórias e com ele partiu um pedaço tão grande de quem eu sou, que não sei quem ficou por cá.
Mas sei que estou a mais.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Preço para a saúde

Luísa Castel-Branco, 04.03.09
 
 

A notícia saiu há dias em alguns jornais. Quase despercebida.

Os idosos deixam de comprar medicamentos por não terem dinheiro. Se pensarmos que esta faixa inclui homens e mulheres a partir dos sessenta anos, temos uma ideia da enorme parte da população nacional de que falamos.

Quanto aos medicamentos, são maioritariamente para a tensão alta, colesterol, doenças coronárias. Estes doentes não tomam medicamentos de vez em quando, têm de o fazer para o resto da vida. E ao interromperem os tratamentos entram em risco de vida. Tenho 54 anos e pertenço a este grupo desde que aos 49 tive um AVC.

Mesmo com os medicamentos que ainda têm comparticipação, tenho que gastar 250 euros todos os meses. Quantas pessoas o podem fazer?

E nem vale a pena falar de casos como a esquizofrenia, cujos medicamentos são muitíssimo caros e a maior parte não convencionados. E acrescento que nada disto tem a ver com a famosa crise que assolou o mundo inteiro. Era exactamente igual antes.

Conclusão: Os portugueses têm que ser ricos para se tratarem convenientemente.

E todos os que descontaram uma vida inteira de trabalho para poderem ter acesso ao Serviço Nacional de Saúde têm razão para se sentirem defraudados. Quanto aos montantes das pensões, basta ler nos jornais as notícias sobre as pensões milionárias dos gestores que continuam a trabalhar para perceber que algo está profundamente errado.

 

in Destak 03 | 03 | 2009  

De mim para mim

Luísa Castel-Branco, 03.03.09

 

Em Setembro vinham os ventos.
Primeiro de mansinho, suave e mesmo delicadamente. As folhas das árvores iniciavam uma dança, devagarinho, abraçando-se umas nas outras.
Pouco a pouco, os ventos ganhavam força e os movimentos da terra aumentavam cada vez mais, mais e mais.
Os canaviais começavam a zumbir, como um silvo de serpente, daquelas que vinham da lagoa e cirandavam pelas pedras, e quando ouviam algum som enrolavam-se como um novelo de lã.
Os dias de Setembro caminhavam e com eles as cousas ganhavam outras cores e texturas.
Por meados do mês já a mãe natureza estava prenha de gemidos, murmúrios que se iam transformando em gritos.
E as folhagens enlouqueciam, as árvores dobravam-se e retorciam-se como se fossem quebrar-se a qualquer momento.
Era então que nos deitávamos nas pedras cobertas de musgo, o corpo a sentir a terra e os olhos bem abertos e fixos no céu recortado pelas copas das árvores que jogavam connosco às escondidas, ora desciam até quase nos lamberem o corpo, ora se levantavam no céu erguendo-se como gigantes pináculos que quase tocavam o tecto do mundo.
Era então que os ventos transtornavam o emudecimento da terra, esse silêncio prenhe de milhares de sons, dos pássaros aos répteis, das abelhas aos carros lá longe a fazerem-se ao caminho de Lisboa.
De repente, e nos ali deitados na pedra, havia mar por todos os lados!
Ondas gigantes que nos podiam engolir a qualquer momento, ondas que vinham e iam e vinham novamente e o som era mágico, inexplicável, de uma beleza que trazia as lágrimas aos olhos.
Deitados com o frio a furar os casacos de malha, os nossos ossos coziam-se com as pedras procurando o quente da terra.
E hipnotizados pelo mar que de repente surgia acima de nós, bastava fechar os olhos e ouviu os ventos e não havia árvores, não haviam as casas lá em baixo, nem nós, miúdos assustados e entusiasmados e agarrados às pedras, ai que a água nos leva, não havia nada a não ser aquele mar que era apenas som e tudo o mais que quiséssemos sonhar, ali com os olhos fechados, ali presos à nossa infância, a porta aberta para o resto da vida e nós que não queremos entrar.
Ah! O vento nunca mais soou como nesses tempos tão limpos e virgens.
Talvez só naquele dia em que olhei lá para fora, porque um mar de vento me puxava, e puxava.
Talvez, mas estou velha demais. Esqueci os segredos que um dia as Deuses me depositaram no canto do ouvido, como quem deixa cair uma gota de mel virgem.
Agora é tarde. Agora as portas dos mistérios fecharam-se definitivamente para mim.