Sorriso perdido
Saiu de casa a correr, atrasada para apanhar o autocarro, a mala a abarrotar e a bater-lhe no peito, o suor a escorrer pelo rosto, a empapar-lhe o cabelo. A chuva miúda tinha transformado as pedras da calçada em tecido mole, e ela a fazer força nos sapatos para não cair, ao mesmo tempo que acelerava os passos, o coração a bater forte.
Eram oito horas de um dia cinzento, peganhento e quente, e ela já estava exausta. Levantara-se, arranjara os miúdos, pegou neles, nas lancheiras, nos casacos e correram para o autocarro. Depois de os deixar na escola, ali estava ela, em pé, a tentar segurar-se na pega do segundo autocarro, entalada entre gente desconhecida, a pensar que ia chegar atrasada ao trabalho, no que havia de fazer para o jantar, na roupa para passar, que aquela chuva miudinha não deixava secar nada.
Foi aí, entre um abanão e uma pisadela e lá à frente duas mulheres que discutiam, foi aí que deu por ter perdido o sorriso. Pensou para si mesma que teria ficado pelo caminho, com as pressas. Ou na cozinha, ou no quarto, talvez na mesa-de-cabeceira, junto à imagem da Virgem. Logo, quando chegasse a casa, tinha que o procurar. E assim, despedida do seu sorriso, foi trabalhar, cumpriu o ritual dos seus dias.
Quando entrou a porta, recordou-se do seu sorriso, e ainda deu uma volta rápida à procura. Mas o tempo urgia para tanta coisa, que desistiu. Anos mais tarde, quando o marido a deixou, ela recordou aquele dia, e o cheiro da chuva e sentiu que fora ai que tudo começara. Quando perdera para sempre o sorriso.
Publicado in DESTAK